Letra: Daniel Gouveia
Música: Daniel Gouveia
Guitarra: Luís Petisca Viola: Armando Figueiredo Viola Baixo: Filipe Vaz da Silva
(CD Até Sempre, Sr, Fado, Faixa 4, Companhia Nacional da música, Lisboa, 2014)
A ZANGA DO FADO
O Fado chamou-me há pedaço,
puxou-me p'lo braço
e desabafou.
Disse: «– Mas que treta é esta,
sou bombo de festa,
já Fado não sou...»
Pasmei! O Fado chorava,
do lenço puxava,
um soluço saiu.
Queixou-se que o tratavam mal,
como coisa banal,
depois prosseguiu:
«– Estou farto de salas imensas,
com luzes intensas,
um som que ensurdece.
Cegam-me com projectores,
nos espectadores
já ninguém me conhece!
Que é feito dos velhos retiros
de bairro, tão giros,
com fado a rigor?
Levaram-me para o Coliseu,
um dia, sei eu...
Talvez p'ró Jamor.
Rodeiam-me de microfones
vendem-me aos càmónes
como um souvenir!
Misturam-me com folclore,
harmónio, tambor,
p'ra me consumir!
Por mim, desde que nasci,
sempre obedeci
a uma tradição.
Agora, sinto-me esquecido,
roubado, traído,
vendido ao balcão.»
Eu disse: «– Oiça, Sr. Fado:
Quem está do seu lado
sempre o adorou.
Mas diga, a quem bem lhe quer,
o que se há-de fazer...»
E o Fado cantou:
«– Pede a quem me anda cantando
que não esqueça como eu era.
Que me defenda estilando
com brio, com raça, gingando,
como em tempos da Severa.
Não esqueçam a minha Hermínia,
a Berta e o Correeiro;
a Maria Teresa, a Ercília,
a minha querida Lucília
e o grande Marceneiro.»
Respondi no mesmo tom:
«– Juro-lhe, do coração,
que apesar das coisas novas,
cantaremos suas trovas
respeitando a tradição.»
Foi-se embora mais feliz,
com um sorriso aliviado.
Virou-se além a acenar-me...
Foi tão bom vir visitar-me!
Até sempre, Sr. Fado.